terça-feira, 10 de agosto de 2010

Mudança...

Em função da maior quantidade de recursos do Wordpress, estou migrando de vez o blog para lá. Agradeço a todos que lêem e comentam meus contos, e deixo o recado que o Almost Heaven mudou de nome e de servidor, e agora se localiza em http://fantasmagorias.wordpress.com/ . Todos aqueles que apreciam meus textos estão obviamente convidados a dar uma visita ao novo blog, e se assim desejarem, assinar o feed RSS para se manterem atualizados ;-
Abraço a todos (e espero vê-los comentando por lá, se possível, rs)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Penitente

Penitente

A igrejinha era um monumento à decrepitude. Ela havia sido bonita algum dia, sem dúvidas, mas a passagem inexorável do tempo descascara as paredes sólidas e apodrecido a madeira da porta. A escada em espiral estava sempre prestes a desabar. Mas havia algo ainda mais arruinado do quê a fachada da igreja – seu espírito. Sim, seu espírito, pois é inegável que construções tem uma presença própria que afeta aqueles que nelas entram. Uma casa, por exemplo, cujo espírito reconfortante é capaz de curar seus moradores. Mas o espírito da igrejinha estava... distorcido, apodrecido, podia-se dizer. Muitos anos antes, algo terrível havia acontecido.
Havia duas pequenas irmãs que visitavam a igreja todos os dias, com seus cabelos escuros como a noite e vestidinhos brancos de pureza incontestável. Era um bairro muito tranquilo, de modo que sempre iam às missas sozinhas e rezavam com um fervor jamais visto pelo pároco. Este era um homenzinho de baixa estatura e olhos penetrantes que, secretamente invejava as irmãs por nunca ter tido contato com o Divino, nem nos anos de seminário, nem depois, ao passo que elas se mostravam com o olhar sereno de quem ouve as vozes dos anjos e santos.
Um dia, as meninas saíram para a igreja e nunca mais voltaram. Desapareceram sem deixar vestígios. O cruel pároco foi capaz de manter a farsa por semanas, até sua repentina e não-explicada morte – certo dia, ele simplesmente tropeçou no interior da igreja, batendo a cabeça nas escadas. Não longe da igreja, a polícia conseguiu localizar os vestidos ensanguentados das meninas. Foi um escândalo. A frequencia na igreja diminui progressivamente, até que ninguém mais ia às missas.
Os únicos visitantes atuais da igrejinha – grupos de jovens que se reúnem no local para fumar, beber ou usar outras drogas mais pesadas – sempre relatam algo muito curioso. Durante as noites – dizem – eles vêem duas lindas garotinhas de cabelo preto a se esconder nos recantos das ruínas, nunca respondendo a chamados; outros falam de um homem baixinho a vagar, implorando com uma voz lamuriosa o perdão de duas gêmeas...
por A. Araújo "Peregrino"
tema sugerido pelo Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com/

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A Justa

A Justa

Ele respira com dificuldade. Deitado no chão frio, uma de suas mãos aperta a perfuração fatal que o derrubou. Seus olhos estão sempre fixos na mesma direção – a direção de onde ela mora. Antes de sair determinado, ele lembra que se ajoelhou e beijou cortesmente aquela mãozinha delicada e macia. Ela sorriu delicadamente e, apesar da tristeza não tentou impedi-lo, pois sabia que era impossível fazê-lo desistir da ideia. Ele é orgulhoso demais. Além disso, foi em honra a ela que ele tomou a decisão.
No presente, a garganta dele faz um som estranho, gorgorejante enquanto ele se lembra do momento fatídico, do calor do combate. Do rosto furioso e grosseiro do homem que o feriu fatalmente. O assassino berrava obscenidades e blasfêmias, e permaneceu por muito tempo junto a sua vítima, fazendo tudo para humilhar e degradar o moribundo, tornar seus momentos ainda mais miseráveis. Mas o moribundo não ouviu quase nada – sua mente voltava-se inteiramente para ela.
O sangue fluía abundantemente do ferimento, e com ele sua consciência. Seus sentidos iam ficando cada vez mais turvos, quando ele avistou ao longe, ela. Com um olhar piedoso de madona, ela o encarava de cima, com uma aura dourada rodeando-lhe o corpo. O moribundo extendeu a mão ensanguentada na mesma direção em que olhava – para ela.
Observando a cena, estava uma multidão perturbada, que cochichava incessantemente, tentando juntar todos os detalhes daquela cena.
- Quem era esse?
- Parece que ele morava no 304. Sujeito esquisito, vivia no mundo das nuvens.
- Ele se engraçou da Helena, do 303, vivia dando flores e presentinhos a ela. A coitada vivia constrangida com isso.
- O quê aconteceu aqui?
- Sabe o Elias, do 303? Ele viu esse sujeito dando presentes para a esposa, a Helena, e decidiu tirar satisfações...
- Nossa, que homem belicoso...
- Coitada da Helena, olha só a carinha dela! Vai acabar com um peso na consciência por causa do que o brutamontes do marido fez...
Alheio a tudo, o moribundo então baixou a mão e perdeu a consciência, à medida que seu espírito desprendia-se do corpo e ele deixava aquela terra impura.

por A. Araújo "Peregrino"

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segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Homem Sem Pecados

O Homem Sem Pecados

Passei apressado pela entrada daquele prédio enorme e elegante, ainda que mal-cuidado. Subi algumas escadas com muito cuidado – a idade dificulta e muito minha vida – até chegar a uma ampla sala de jantar. Coloquei sobre mesa toda a comida que consegui trazer comigo, e comecei a comer.
Eu sempre me pergunto o quê me trouxe até este momento – o quê aconteceu de verdade, há mais de cinco décadas. Eu era uma criança na época, mas posso me lembrar de cada detalhe... Provavelmente por quê desde então, nada mais aconteceu no mundo. O mundo mudou naquele dia. Eu estava numa rua movimentada junto com meus pais, quando subitamente uma tétrica luz verde iluminou os céus e me cegou por muitos minutos: minutos de brilho verde intenso, depois dos quais, não haviam mais pessoas na rua. Absolutamente ninguém. Até os carros pararam exatamente onde estavam, ainda ligados. Caminhando pela rua, eu veria telefones públicos fora do gancho, celulares no chão. Televisões ligadas em noticiários sem pessoas. Livros caídos, ainda abertos nas páginas que eram lidas até então.
E desde então, como eu viria a descobrir algum tempo depois, eu fiquei sozinho neste planeta. Todos os outros foram levados, não sei por quê, não sei por quem. Minha vida paralizou-se naquele dia. Eu tenho nada o quê fazer durante todo o dia. Nunca mais cuidei de minha aparência ou coisa parecida – por quê deveria?
Eu vivo um pesadelo que nunca acaba: eu acordo, e é eternamente o mesmo dia de décadas atrás: não há ninguém nas ruas, ninguém nos prédios, ninguém em canto nenhum. A diferença é que ontem eu era jovem, bonito e bem-cuidado; hoje eu estou envelhecido, carcomido pelo tempo e sujo. Sou alguém que envelheceu mais de cinquenta anos em um dia.
Mas uma coisa da vida “civilizada” eu não ousei abandonar em todos esses anos: a linguagem. Sim, eu ainda sou capaz de falar algo compreensível – e é somente por esse motivo que eu posso rezar todos os dias, na esperança de que Deus me leve para onde estão todos os outros.

por A. Araújo "Peregrino"

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domingo, 13 de junho de 2010

Você já dançou com o demônio sob a luz do luar?

Inspirado (de certa forma) por um certo conto de fadas...
Sapatos Vermelhos

Na minha época, eu era um artista. Minhas obras de arte assombravam pessoas ao redor do país – e cada nova exposição merecia destalhe nos melhores jornais. O segredo da arte não é “dom” ou “talento” - essas palavras fazem pouco sentido na linguagem de um profissional. O quê define a qualidade do trabalho do artista é “prática” e, principalmente gostar do que faz. E eu gostava do quê fazia. A essência de uma alma, num momento efêmero de êxtase.
A polícia, obviamente, estava enlouquecida atrás de mim. Eles me caçavam como a um animal – um animal perigoso. Mas um animal perigoso cujo rosto eles desconheciam. A única verdade absoluta sobre meu caráter eram minhas obras – os 37 corpos de criancinhas que eu deixei para trás. Meninos e meninas, de todas as idades. Ainda hoje, a lembrança de nossos momentos juntos são a única coisa que conseguem me proporcionar alguma satisfação... Apesar disso tudo, eles nunca conseguiram me capturar. Eu era esquivo demais, esguio demais. Eles eram assustados e incompetentes. E eu me safei. Por anos. Até o dia fatídico em que meu coração falhou.
Hoje, eu sei o significado da palavra tormento. Tempo não tem significado aqui – o único tempo é o da minha mente prodigiosa. É um espetáculo bem-feito, tenho que admitir: a clareira à luz do luar, as cores, a vivacidade. Até a música, saída da boca de mil almas desencarnadas, ao som da qual eu danço. Sou forçado a dançar sem parar, para a diversão do próprio Demônio. Ao redor da clareira, sou observado por milhares de pessoas, satisfeitas com meu sofrimento. E eu continuo a dançar, martirizado pelas obras de arte que nunca mais poderei realizar. Eu posso suportar o olhar dos espectadores, o fato de me tornar a diversão viva e eterna do Demônio. Mas se ele ao menos me deixasse tirar estes malditos sapatos de ferro em brasa..!
por A. Araújo "Peregrino"
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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Demônios

Nossa! Tema cabuloso o desta semana =o
Quase que não consigo escrever nada - mas aí vai:

Demônios


Ela estava tão feliz! Sentia-se bonita, desejada, amada! Ele a fazia se sentir tão bem que ela seguiu cegamente sua sugestão de entrarem juntos na banheira. Ela se despiu, e sua pele branca e sem marcas reluziu aos olhos dele. Ela se sentou confortavelmente, recostando-se na banheira enquanto esperava por seu amado.
Ele estava tenso. Suava nervosamente enquanto olhava para o corpo nu e belo dela. Para seus olhos verdes, para seus seios perfeitos, para os pelos meticulosamente aparados da virilha, para o meio de suas pernas... Ele não sabia para onde olhar. Tinha somente uma coisa em mente.
Como ela, ele se despiu, e em toda a glória de sua nudez, finalmente agiu. Debruçou-se sobre a banheira, e olhando para o rosto alegre dela, levou as mãos ao seu pescoço, apertando-o, e empurrando sua cabeça para dentro d'água. Ela se debatia freneticamente, tentando livrar-se do aperto titânico dele, lutando para encher seus pulmões de ar, e não de água. Cada segundo debaixo d'água, o pensamento dela corria por mil coisas... Todas eventualmente envolviam sua morte. O olhar ensandecido dele a assustava, e ela estava perdendo a consciência quando ele a soltou por alguns segundos, com um olhar apavorado. Usando o pouco de energia que lhe restava, ela levantou bruscamente o joelho, acertando-o com força na virilha. Ele se inclinou de dor enquanto ela finalmente enchia os pulmões com o ar que tanto precisava. No desespero de quem está prestes a morrer, ela bateu a cabeça dele com força na banheira. Ele perdeu a consciência, enquanto a água ficava cor de sangue...
Ela saiu da banheira ofegando, e com lágrimas nos olhos, observou seu amado por vários minutos, sem nada fazer. Então, num suspiro lamentoso, sussurrou finalmente:
- Jonas, por quê fez isso..? Por quê?

por A. Araújo "Peregrino"

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sábado, 29 de maio de 2010

Jonas

Jonas

A maquiagem dela está borrada pelas lágrimas. Sentada dentro do banheiro da suíte impecavelmente limpa, ela chora profusamente. A seus pés, está um cinzeiro, cheio de bitucas de cigarro e dos restos de si mesma. Seus braços estão vermelhos: uma mistura da pele ruborizada, sangue fresco, e sangue seco. O gotejar lento, inexorável da torneira quebrada é a trilha sonora de sua agonia. Cada gota amplia e aguça-lhe os sentidos. Ela levanta a cabeça o suficiente para ficar frente ao espelho, e mergulha seu olhar no interior de sua alma angustiada através de seus olhos verdes inchados. Seus sentidos aguçados conseguem ouvir quando cada gota de suas lágrimas cai na pequena poça que se forma a seus pés. Combinadas água, lágrimas e sangue, é formada a sinfonia de sua dor.
Oh Jonas! Por quê fez isso, por quê? Por quê me deixou? Por quê?
Por trás do sangue em seus braços, cortes formam claramente as palavras eu te amo. Muitas vezes. O mural de sua devoção. Escrito em cortes e sangue coagulado. A seus pés, ao lado da poça de lágrimas, está caído um estilete sujo de sangue. Soluçando, ela olha para suas unhas, sujas com seu sangue e sua carne. Ela se levanta, e olha pela janela do banheiro, para a movimentada avenida lá embaixo, onde os carros passeiam desapercebidos de seu suplício. Ela volta a chorar na janela, com o vento fresco batendo em seu rosto.
Jonas, por quê, por quê? Eu te amo tanto, tanto!Teamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamo...
No banheiro, dentro da banheira, repousam boiando em sangue os pedaços desmembrados do corpo de um homem...
por A. Araújo "Peregrino"
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domingo, 23 de maio de 2010

Área de Fumantes

Desta vez, um tema que trabalhei menos no campo da abstração e mais no campo objetivo... Enfim, não há muito que falar sobre ele, rs





Área de Fumantes


Paulo entrou no humilde restaurante a passos trôpegos e buscou uma mesa bem distante da porta. Seu chapéu estava encharcado por conta da chuva torrencial que desabava lá fora. Com um gesto rígido, ele tirou um pequeno objeto do bolso – um único cigarro, que havia conseguido escapar ileso à tempestade. Colocou o cigarro na boca e o acendeu usando seu isqueiro. Antes que pudesse dar aquela necessária primeira tragada, um homem jovem, aproximou-se receosamente e falou de forma subserviente.
- Senhor, esta é a área para não-fumantes.
- Oh sim, perdoe.
Ele estava desapontado, mas apagou o cigarro à sua frente. Regras são regras. Não que ele nunca houvesse quebrado regras em sua vida, mas não costumava fazê-lo sem bons motivos. O rapaz foi embora e Paulo continuou sentado, olhos escondidos pelo chapéu, fitando o vazio. Estava respirando com dificuldades.
Ficou alguns bons minutos sozinho, pensando em sua vida e seus atos, quando o mesmo homem jovem chegou cautelosamente.
- Senhor, está se sentindo bem?
Paulo suspirou.
- Sim, estou; escute, pode sentar-se por favor?
O outro sentou-se e olhou desconfiado para Paulo.
- Escute... Eu gostaria que você me fizesse um favor. Jure que vai fazê-lo.
- Senhor, eu...
- Jure que vai fazê-lo.
- Mas eu preciso saber do quê se trata antes de...
- Jure.
- Eu juro.
- Eu não escutei.
- Eu juro!
O pobre homem estava ficando assustado. Paulo então colocou a mão no bolso e puxou sua carteira. De dentro da carteira, ele tirou um papel com alguns números.
- Os primeiros números são o telefone da minha ex-mulher. O resto é uma conta no banco. Uma conta com muito dinheiro. Dinheiro sangrento. – uma lágrima caiu dos olhos de Paulo – Mas ele será útil para minha querida filha.
Ele pausou um instante, enquanto o outro digeria a informação com sua expressão de espanto. Paulo continuou a falar.
- Minha esposa nunca entendeu o quê eu fazia. Ela nunca quis entender que eu estava fazendo tudo por ela e por nossa filha... Mas ela precisa aceitar isso. É meu legado para elas. Invente uma explicação qualquer, mas faça com que aceite este dinheiro. Eu sei que você não ficará com ele... Posso ver em seus olhos. São olhos honestos. Você é incapaz de fazer o quê eu fiz.
Dizendo isso, Paulo baixou os olhos para mesa e continuou tentando respirar.
- Senhor, tem certeza de quê está bem? Eu vou chamar um méd...
Num movimento rápido, Paulo puxou um revólver, engatilhou-o e apontou para o homem por baixo da mesa.
- Vá embora. Faça como jurou fazer. Não olhe para trás. VÁ!
O homem saiu correndo pela rua com o papel em mãos. Paulo sabia que ele conseguiria. Heh. Bom rapaz. Ele guardou o revólver novamente, e, respirando com dificuldade, levou a mão ao abdôme, segurando com firmeza o buraco que o projétil havia feito ao entrar em seu corpo. Paulo então pensou em sua filhinha. E expirou.

por A. Araújo "Peregrino"

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Virada do Século


Mais um tema com imagens. Achei essa imagem bem forte, um robô que chora. Meu pensamento na hora foi: por quê ele chora? A resposta: porque ele não é humano. Então, a história que dei o título de Virada do Século foi-se construindo na minha mente: é uma história sobre mudança, evolução e perda.

Virada do Século


Ah! Este século que passou trouxe muitas mudanças maravilhosas! A regra de ouro de nossa civilização é aperfeiçoar. É a saúde perfeita e a transcendência dos limites do corpo. Hoje é dia 31 de dezembro de 3000, e Maurício Andrade dorme um sono transformador na mesa de cirurgia. Ele sonha com todos os tratamentos e cirurgias maravilhosas a que já se submeteu – pois neste nosso último século, tais tratamentos se tornaram tão baratos que famílias passando fome conseguem pagar as prestações. Maurício sonha com sua primeira cirurgia: um fígado artificial para substituir o fígado antigo, corroído pela hepatite. Tempos depois, ele fez outra cirurgia, e ganhou um novo coração. Esse novo coração é capaz de bombear sangue cerca de três vezes mais rápido que um coração normal: quando é preciso, ele é capaz de reagir muito mais rápido que os pobres mortais do século XXI. Os pulmões artificiais de Maurício são igualmente eficientes: ele parece uma máquina, incapaz de sentir cansaço e exaustão.
Pernas artificiais, mais resistentes. Ossos quase inquebráveis. Língua com uma maior concentração de papilas gustativas. Plásticas que lhe deram um rosto perfeito. Tratamentos de pele. Dentes brancos, que não retêm sujeira. Implantes que injetam drogas automaticamente em sua corrente sanguínea. Drogas que aumentam seu apetite e perfomance sexual. Chips que controlam toda a parafernalha tecnológica. Nas mãos dos médicos e máquinas habilidosos, Maurício é submetido a mais uma cirurgia: novos olhos. Os novos olhos de Maurício são capazes de enxergar cores que nem se sabia que existiam no século XXI. Uma visão melhor do quê qualquer outra que a natureza pudesse dar.
Maurício abre seus novos olhos, e observa o mundo com curiosidade. Ele olha para as construções a seu redor, as marcas inegáveis do poder e supremacia do homem sobre a natureza. Ele olha para suas mãos aperfeiçoadas e a vê em detalhes que animal algum conseguiria. Ao longe, vem voando uma pequena borboleta, cujas cores na verdade são bem diferentes das que nossos ancestrais viam, séculos atrás. Maurício é tomado então pela consciência terrível da existência, e seu coração se enche de pavor inevitável. De seu olho perfeito, cai uma lágrima solitária pela humanidade perdida.

por A. Araújo "Peregrino"

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Lutos


O tema desta semana do Café Samedi foi uma imagem. Ao ver essa imagem, o quê eu imagino é o primeiro contato infantil com a morte, e como as crianças provavelmente a vêem de forma bem diferente dos adultos. Portanto, eu fiz um exercício imaginativo para pensar como seria se essa primeira morte não fosse de um mero pássaro, e de como isso poderia afetar a vida futura. Enfim, sem mais demoras:

Lutos


A primeira coisa que pensei quando vi minha irmã deitada naquele esquife branco e puro foi no quanto ela estava linda. Sua pele pálida e seus olhos permanentemente cerrados, na tranquilidade de um sonho idílico e eterno. Na época, eu era tão pequena que precisei ficar na ponta de meus pezinhos para conseguir olhar para ela em seu momento derradeiro. Eu não falei nada durante todo o velório, nem após o enterro. Os amigos da família diziam falsamente condoídos: “Coitadinha! Ela é tão jovem! Está em choque com a morte da irmãzinha!”. Já a primeira coisa em que pensei quando mamãe me disse que Lúcia não ia voltar foi que eu poderia ficar com todos os brinquedos dela. E que agora eu não precisava mais disputar atenção.
Alguns anos depois, acompanhei o velório do meu tio, em seu belo terno fúnebre. Sob os olhares chorosos, de pesares e/ou de pena ao meu redor, não derramei nenhuma lágrima. Apenas observei a beleza da imobilidade de meu tio. E os cânticos e discursos fúnebres. Foi então que me dei conta do quanto havia ficado obcecada com esse lugar misterioso e distante para o qual as pessoas “iam embora”. Para onde haviam ido Lúcia e meu tio.
Por toda minha vida, acompanhei outros tantos velórios e funerais, com devoção e adoração. Era um momento de êxtase após o outro. Família, amigos, até mesmo de alguns desconhecidos que eu via ao longe. E hoje, após tantos anos... Chegou a minha vez. Estou tão doente, e já sinto algo indo embora de mim. Fiz todos os preparativos necessários, e agora só me resta aguardar o momento de conhecer aquele lugar estranho e até então inacessível, e esperar que lá eles me recebam de braços abertos, e que aqui eles chorem de alegria com minha partida.

por A. Araújo "Peregrino"

Um Novo Começo

Esta postagem marca uma nova era para o Almost in Heaven - agora ele se torna o local para participar do Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com . Eu pretendia criar um novo blog para participar, mas me lembrei do velho Almost in Heaven, e decidi remodelá-lo para se adequar a meus novos propósitos. Enfim, é só isso
Abraços