sábado, 29 de maio de 2010

Jonas

Jonas

A maquiagem dela está borrada pelas lágrimas. Sentada dentro do banheiro da suíte impecavelmente limpa, ela chora profusamente. A seus pés, está um cinzeiro, cheio de bitucas de cigarro e dos restos de si mesma. Seus braços estão vermelhos: uma mistura da pele ruborizada, sangue fresco, e sangue seco. O gotejar lento, inexorável da torneira quebrada é a trilha sonora de sua agonia. Cada gota amplia e aguça-lhe os sentidos. Ela levanta a cabeça o suficiente para ficar frente ao espelho, e mergulha seu olhar no interior de sua alma angustiada através de seus olhos verdes inchados. Seus sentidos aguçados conseguem ouvir quando cada gota de suas lágrimas cai na pequena poça que se forma a seus pés. Combinadas água, lágrimas e sangue, é formada a sinfonia de sua dor.
Oh Jonas! Por quê fez isso, por quê? Por quê me deixou? Por quê?
Por trás do sangue em seus braços, cortes formam claramente as palavras eu te amo. Muitas vezes. O mural de sua devoção. Escrito em cortes e sangue coagulado. A seus pés, ao lado da poça de lágrimas, está caído um estilete sujo de sangue. Soluçando, ela olha para suas unhas, sujas com seu sangue e sua carne. Ela se levanta, e olha pela janela do banheiro, para a movimentada avenida lá embaixo, onde os carros passeiam desapercebidos de seu suplício. Ela volta a chorar na janela, com o vento fresco batendo em seu rosto.
Jonas, por quê, por quê? Eu te amo tanto, tanto!Teamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamoteamo...
No banheiro, dentro da banheira, repousam boiando em sangue os pedaços desmembrados do corpo de um homem...
por A. Araújo "Peregrino"
tema da semana do Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com/

domingo, 23 de maio de 2010

Área de Fumantes

Desta vez, um tema que trabalhei menos no campo da abstração e mais no campo objetivo... Enfim, não há muito que falar sobre ele, rs





Área de Fumantes


Paulo entrou no humilde restaurante a passos trôpegos e buscou uma mesa bem distante da porta. Seu chapéu estava encharcado por conta da chuva torrencial que desabava lá fora. Com um gesto rígido, ele tirou um pequeno objeto do bolso – um único cigarro, que havia conseguido escapar ileso à tempestade. Colocou o cigarro na boca e o acendeu usando seu isqueiro. Antes que pudesse dar aquela necessária primeira tragada, um homem jovem, aproximou-se receosamente e falou de forma subserviente.
- Senhor, esta é a área para não-fumantes.
- Oh sim, perdoe.
Ele estava desapontado, mas apagou o cigarro à sua frente. Regras são regras. Não que ele nunca houvesse quebrado regras em sua vida, mas não costumava fazê-lo sem bons motivos. O rapaz foi embora e Paulo continuou sentado, olhos escondidos pelo chapéu, fitando o vazio. Estava respirando com dificuldades.
Ficou alguns bons minutos sozinho, pensando em sua vida e seus atos, quando o mesmo homem jovem chegou cautelosamente.
- Senhor, está se sentindo bem?
Paulo suspirou.
- Sim, estou; escute, pode sentar-se por favor?
O outro sentou-se e olhou desconfiado para Paulo.
- Escute... Eu gostaria que você me fizesse um favor. Jure que vai fazê-lo.
- Senhor, eu...
- Jure que vai fazê-lo.
- Mas eu preciso saber do quê se trata antes de...
- Jure.
- Eu juro.
- Eu não escutei.
- Eu juro!
O pobre homem estava ficando assustado. Paulo então colocou a mão no bolso e puxou sua carteira. De dentro da carteira, ele tirou um papel com alguns números.
- Os primeiros números são o telefone da minha ex-mulher. O resto é uma conta no banco. Uma conta com muito dinheiro. Dinheiro sangrento. – uma lágrima caiu dos olhos de Paulo – Mas ele será útil para minha querida filha.
Ele pausou um instante, enquanto o outro digeria a informação com sua expressão de espanto. Paulo continuou a falar.
- Minha esposa nunca entendeu o quê eu fazia. Ela nunca quis entender que eu estava fazendo tudo por ela e por nossa filha... Mas ela precisa aceitar isso. É meu legado para elas. Invente uma explicação qualquer, mas faça com que aceite este dinheiro. Eu sei que você não ficará com ele... Posso ver em seus olhos. São olhos honestos. Você é incapaz de fazer o quê eu fiz.
Dizendo isso, Paulo baixou os olhos para mesa e continuou tentando respirar.
- Senhor, tem certeza de quê está bem? Eu vou chamar um méd...
Num movimento rápido, Paulo puxou um revólver, engatilhou-o e apontou para o homem por baixo da mesa.
- Vá embora. Faça como jurou fazer. Não olhe para trás. VÁ!
O homem saiu correndo pela rua com o papel em mãos. Paulo sabia que ele conseguiria. Heh. Bom rapaz. Ele guardou o revólver novamente, e, respirando com dificuldade, levou a mão ao abdôme, segurando com firmeza o buraco que o projétil havia feito ao entrar em seu corpo. Paulo então pensou em sua filhinha. E expirou.

por A. Araújo "Peregrino"

tema da semana do Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com/

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Virada do Século


Mais um tema com imagens. Achei essa imagem bem forte, um robô que chora. Meu pensamento na hora foi: por quê ele chora? A resposta: porque ele não é humano. Então, a história que dei o título de Virada do Século foi-se construindo na minha mente: é uma história sobre mudança, evolução e perda.

Virada do Século


Ah! Este século que passou trouxe muitas mudanças maravilhosas! A regra de ouro de nossa civilização é aperfeiçoar. É a saúde perfeita e a transcendência dos limites do corpo. Hoje é dia 31 de dezembro de 3000, e Maurício Andrade dorme um sono transformador na mesa de cirurgia. Ele sonha com todos os tratamentos e cirurgias maravilhosas a que já se submeteu – pois neste nosso último século, tais tratamentos se tornaram tão baratos que famílias passando fome conseguem pagar as prestações. Maurício sonha com sua primeira cirurgia: um fígado artificial para substituir o fígado antigo, corroído pela hepatite. Tempos depois, ele fez outra cirurgia, e ganhou um novo coração. Esse novo coração é capaz de bombear sangue cerca de três vezes mais rápido que um coração normal: quando é preciso, ele é capaz de reagir muito mais rápido que os pobres mortais do século XXI. Os pulmões artificiais de Maurício são igualmente eficientes: ele parece uma máquina, incapaz de sentir cansaço e exaustão.
Pernas artificiais, mais resistentes. Ossos quase inquebráveis. Língua com uma maior concentração de papilas gustativas. Plásticas que lhe deram um rosto perfeito. Tratamentos de pele. Dentes brancos, que não retêm sujeira. Implantes que injetam drogas automaticamente em sua corrente sanguínea. Drogas que aumentam seu apetite e perfomance sexual. Chips que controlam toda a parafernalha tecnológica. Nas mãos dos médicos e máquinas habilidosos, Maurício é submetido a mais uma cirurgia: novos olhos. Os novos olhos de Maurício são capazes de enxergar cores que nem se sabia que existiam no século XXI. Uma visão melhor do quê qualquer outra que a natureza pudesse dar.
Maurício abre seus novos olhos, e observa o mundo com curiosidade. Ele olha para as construções a seu redor, as marcas inegáveis do poder e supremacia do homem sobre a natureza. Ele olha para suas mãos aperfeiçoadas e a vê em detalhes que animal algum conseguiria. Ao longe, vem voando uma pequena borboleta, cujas cores na verdade são bem diferentes das que nossos ancestrais viam, séculos atrás. Maurício é tomado então pela consciência terrível da existência, e seu coração se enche de pavor inevitável. De seu olho perfeito, cai uma lágrima solitária pela humanidade perdida.

por A. Araújo "Peregrino"

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Lutos


O tema desta semana do Café Samedi foi uma imagem. Ao ver essa imagem, o quê eu imagino é o primeiro contato infantil com a morte, e como as crianças provavelmente a vêem de forma bem diferente dos adultos. Portanto, eu fiz um exercício imaginativo para pensar como seria se essa primeira morte não fosse de um mero pássaro, e de como isso poderia afetar a vida futura. Enfim, sem mais demoras:

Lutos


A primeira coisa que pensei quando vi minha irmã deitada naquele esquife branco e puro foi no quanto ela estava linda. Sua pele pálida e seus olhos permanentemente cerrados, na tranquilidade de um sonho idílico e eterno. Na época, eu era tão pequena que precisei ficar na ponta de meus pezinhos para conseguir olhar para ela em seu momento derradeiro. Eu não falei nada durante todo o velório, nem após o enterro. Os amigos da família diziam falsamente condoídos: “Coitadinha! Ela é tão jovem! Está em choque com a morte da irmãzinha!”. Já a primeira coisa em que pensei quando mamãe me disse que Lúcia não ia voltar foi que eu poderia ficar com todos os brinquedos dela. E que agora eu não precisava mais disputar atenção.
Alguns anos depois, acompanhei o velório do meu tio, em seu belo terno fúnebre. Sob os olhares chorosos, de pesares e/ou de pena ao meu redor, não derramei nenhuma lágrima. Apenas observei a beleza da imobilidade de meu tio. E os cânticos e discursos fúnebres. Foi então que me dei conta do quanto havia ficado obcecada com esse lugar misterioso e distante para o qual as pessoas “iam embora”. Para onde haviam ido Lúcia e meu tio.
Por toda minha vida, acompanhei outros tantos velórios e funerais, com devoção e adoração. Era um momento de êxtase após o outro. Família, amigos, até mesmo de alguns desconhecidos que eu via ao longe. E hoje, após tantos anos... Chegou a minha vez. Estou tão doente, e já sinto algo indo embora de mim. Fiz todos os preparativos necessários, e agora só me resta aguardar o momento de conhecer aquele lugar estranho e até então inacessível, e esperar que lá eles me recebam de braços abertos, e que aqui eles chorem de alegria com minha partida.

por A. Araújo "Peregrino"

Um Novo Começo

Esta postagem marca uma nova era para o Almost in Heaven - agora ele se torna o local para participar do Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com . Eu pretendia criar um novo blog para participar, mas me lembrei do velho Almost in Heaven, e decidi remodelá-lo para se adequar a meus novos propósitos. Enfim, é só isso
Abraços