segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Homem Sem Pecados

O Homem Sem Pecados

Passei apressado pela entrada daquele prédio enorme e elegante, ainda que mal-cuidado. Subi algumas escadas com muito cuidado – a idade dificulta e muito minha vida – até chegar a uma ampla sala de jantar. Coloquei sobre mesa toda a comida que consegui trazer comigo, e comecei a comer.
Eu sempre me pergunto o quê me trouxe até este momento – o quê aconteceu de verdade, há mais de cinco décadas. Eu era uma criança na época, mas posso me lembrar de cada detalhe... Provavelmente por quê desde então, nada mais aconteceu no mundo. O mundo mudou naquele dia. Eu estava numa rua movimentada junto com meus pais, quando subitamente uma tétrica luz verde iluminou os céus e me cegou por muitos minutos: minutos de brilho verde intenso, depois dos quais, não haviam mais pessoas na rua. Absolutamente ninguém. Até os carros pararam exatamente onde estavam, ainda ligados. Caminhando pela rua, eu veria telefones públicos fora do gancho, celulares no chão. Televisões ligadas em noticiários sem pessoas. Livros caídos, ainda abertos nas páginas que eram lidas até então.
E desde então, como eu viria a descobrir algum tempo depois, eu fiquei sozinho neste planeta. Todos os outros foram levados, não sei por quê, não sei por quem. Minha vida paralizou-se naquele dia. Eu tenho nada o quê fazer durante todo o dia. Nunca mais cuidei de minha aparência ou coisa parecida – por quê deveria?
Eu vivo um pesadelo que nunca acaba: eu acordo, e é eternamente o mesmo dia de décadas atrás: não há ninguém nas ruas, ninguém nos prédios, ninguém em canto nenhum. A diferença é que ontem eu era jovem, bonito e bem-cuidado; hoje eu estou envelhecido, carcomido pelo tempo e sujo. Sou alguém que envelheceu mais de cinquenta anos em um dia.
Mas uma coisa da vida “civilizada” eu não ousei abandonar em todos esses anos: a linguagem. Sim, eu ainda sou capaz de falar algo compreensível – e é somente por esse motivo que eu posso rezar todos os dias, na esperança de que Deus me leve para onde estão todos os outros.

por A. Araújo "Peregrino"

tema sugerido pelo Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com


Um comentário:

Bruno Ribeiro disse...

Excelente! Adorei o nome do conto também, diz muito sobre o texto.