quarta-feira, 21 de julho de 2010

A Justa

A Justa

Ele respira com dificuldade. Deitado no chão frio, uma de suas mãos aperta a perfuração fatal que o derrubou. Seus olhos estão sempre fixos na mesma direção – a direção de onde ela mora. Antes de sair determinado, ele lembra que se ajoelhou e beijou cortesmente aquela mãozinha delicada e macia. Ela sorriu delicadamente e, apesar da tristeza não tentou impedi-lo, pois sabia que era impossível fazê-lo desistir da ideia. Ele é orgulhoso demais. Além disso, foi em honra a ela que ele tomou a decisão.
No presente, a garganta dele faz um som estranho, gorgorejante enquanto ele se lembra do momento fatídico, do calor do combate. Do rosto furioso e grosseiro do homem que o feriu fatalmente. O assassino berrava obscenidades e blasfêmias, e permaneceu por muito tempo junto a sua vítima, fazendo tudo para humilhar e degradar o moribundo, tornar seus momentos ainda mais miseráveis. Mas o moribundo não ouviu quase nada – sua mente voltava-se inteiramente para ela.
O sangue fluía abundantemente do ferimento, e com ele sua consciência. Seus sentidos iam ficando cada vez mais turvos, quando ele avistou ao longe, ela. Com um olhar piedoso de madona, ela o encarava de cima, com uma aura dourada rodeando-lhe o corpo. O moribundo extendeu a mão ensanguentada na mesma direção em que olhava – para ela.
Observando a cena, estava uma multidão perturbada, que cochichava incessantemente, tentando juntar todos os detalhes daquela cena.
- Quem era esse?
- Parece que ele morava no 304. Sujeito esquisito, vivia no mundo das nuvens.
- Ele se engraçou da Helena, do 303, vivia dando flores e presentinhos a ela. A coitada vivia constrangida com isso.
- O quê aconteceu aqui?
- Sabe o Elias, do 303? Ele viu esse sujeito dando presentes para a esposa, a Helena, e decidiu tirar satisfações...
- Nossa, que homem belicoso...
- Coitada da Helena, olha só a carinha dela! Vai acabar com um peso na consciência por causa do que o brutamontes do marido fez...
Alheio a tudo, o moribundo então baixou a mão e perdeu a consciência, à medida que seu espírito desprendia-se do corpo e ele deixava aquela terra impura.

por A. Araújo "Peregrino"

tema sugerido pelo Café Samedi: http://cafesamedi.wordpress.com/

Um comentário:

Bruno Ribeiro disse...

Gostei bastante, bem clássico.